A vida de Renato, contada quase diariamente por seu biógrafo favorito

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Jerusalém (10/10/2015)

Rotina de hotel é rotina de hotel, não tem jeito. Acordar, se arrumar no mesmo espaço cada dia mais claustrofóbico que era o quarto 611, descer ao mesmo restaurante para tomar o mesmo café da manhã com as mesmas pessoas. Entediante. A promessa para movimentar o dia era a viagem a Jerusalém, contratada com um guia turístico brasileiro que mora em Israel há 12 anos chamado Samuel.

Em determinada fase da vida, ele decidiu sair do Pará com a mulher e duas filhas pequenas e, aproveitando a boa fase do país judaico do Oriente Médio e suas raízes hebraicas, migrou para Israel e se estabeleceu no ramo de turismo.

Samuel recebeu Renato e seus colegas com um carro elegante, tipo minivan, que o rapaz não soube identificar nem a marca, quanto mais o modelo. Bancos de couro, portas traseiras automáticas, sistema de som moderno, painel com tela de LED e tudo o mais que pode haver de opcional em veículos de passeio. Foi nessa pequena caixa de luxo motorizada que eles saíram pela estrada.

No caminho, o guia mostrou obras e melhorias de infraestrutura, o que fascinou os engenheiros civis do grupo (Renato e José, a saber). Os dois identificaram materiais, técnicas de obras, equipamentos e chegaram a começar a se aprofundar no assunto quando Mateus os lembrou que não estava entendendo nada. Com riso contido, porém compreensivos, os dois mudaram o assunto para incluir o terceiro elemento.

Foi pouco mais de uma hora de viagem até se aproximarem das cercanias da Cidade Santa, quando Samuel colocou no rádio uma música típica judaica em homenagem ao lugar: Jerusalém de Ouro. A vista, mesmo de dentro do carro, combinava com a melodia perfeitamente. Ambas carregam a memória para milhares de anos no passado, sem que se sintisse o processo acontecer. É como se o carro fosse substituído naquele instante por cavalos e as roupas por túnicas. À frente, uma cidade cor de areia encrustada no deserto fazia questão de ser notada.

Aparentemente um modus operandi dos guias, Samuel propôs que se percorresse um trajeto cronológico de Jesus em seus últimos dias. Começaram pelos jardins do Monte das Oliveiras, onde há igrejas católicas e ortodoxas no local em que o Messias teria orado em vigília na noite de véspera da sua prisão. Foram a ambas, lindíssimas e grandiosas. Curioso foi Renato notar que os ortodoxos também ergueram por ali uma igreja em homenagem a Maria Madalena, personagem de segundo plano para os católicos. O grupo não passou nesse tempo, apesar da vontade oculta do rapaz de conhecer e entender o que levou um ramo do cristianismo a homenagear uma ex-prostituta. Contudo, parece que o preconceito religioso de José e Mateus não abriu margem pra esse tipo de oportunidade.

Dali, os turistas seguiram para a cidade velha para conhecer o interior dos muros do que um dia foi uma fortaleza e hoje está dividida milimetricamente entre católicos, ortodoxos, árabes e judeus. O portão por que entraram era alto e largo, todo em pedra. Embora fosse rústico, mantinha uma exuberância típica das grandes construções da Idade Antiga. Lá dentro, vielas estreitas e labirínticas levavam por caminhos que só alguém com experiência suficiente poderia se localizar. Frente de casas se confundiam com lojas, raramente sendo possível identificar o que era um e o que era outro, se as portas estivessem fechadas. Por se tratar de um sábado, essa era uma cena recorrente.

Depois de algumas direitas e esquerdas, eles chegaram ao túmulo do rei Davi, local sagrado para os judeus. Os homens eram obrigados a colocar o quipá, aquela cobertura redonda típica sobre as cabeças dos judeus, e as mulheres a cobrir a cabeça e o colo com um véu ou um lenço. Lá dentro, nada de mais, a não ser um túmulo de pedra. Renato preferiu prestar mais atenção aos judeus tradicionalistas que vigiavam e cuidavam do ambiente, com suas barbas compridas, vestes de algodão, tranças esquisitas nas costeletas e caras rabugentas.

Após este ponto, seguiram por mais trajetos impossíveis de memorizar e chegaram a uma igreja curiosa, engastada na base de uma outra construção de uso indefinido. Internamente, símbolos católicos na pedra dividiam espaço com um belo vitral árabe, com escrita naquela língua inclusive. Enquanto José e Mateus faziam suas preces ali, Renato só tirou uma bela foto da janela de vidros decorados.

Próxima parada, Via Dolorosa. Conforme explicado por Samuel, eles caminhariam por onde se acredita que Jesus levou sua cruz nos ombros, depois de açoitado, para ser crucificado. De tênis, camiseta e óculos de sol, Renato cansou. José suou. Mateus, o de pior preparo físico, chegou ofegante e quase precisou parar no caminho. Não sem razão, todos refletiram em silêncio quando Samuel falou "Agora imagina fazer tudo isso machucado e com uma tora de madeira nas costas".

No fim da via, chegaram à Igreja do Túmulo de Cristo. Uma fila gigantesca apontava onde ir para conhecer o local em que se alega que Jesus foi enterrado após o martírio. A ansiedade dos dois mais velhos assemelhava-se a de crianças em uma fila para conhecer Papai Noel no shopping. Para Renato, restava o papel do adulto que precisa acompanhar os pequenos, mesmo sabendo que é um homem comum com uma roupa vermelha de inverno que vai entregar um pirulito para seus visitantes.

Uma hora de espera depois e tendo visitado mais uma caixa sacra de pedra, eles percorreram o restante da igreja com seus doces espirituais na boca em forma de comentários tipo "como me sinto abençoado" e afins. Conheceram onde supostamente o corpo de Jesus foi lavado, onde ele foi de fato erguido para morrer pendurado e até uma "evidência" do terremoto que se deu após a morte do Salvador: uma trinca grande na rocha do solo da igreja.

Encerrados os passeios cristãos, aproveitaram para visitar o Muro das Lamentações. Interessante foi Renato ter notado que sua indiferença anterior era vista agora também no rosto de José e Mateus frente àquele ponto sagrado para os judeus. Isso ajudou a diminuir o peso na consciência que a repetição do sentimento tratou de aumentar em cada sítio a que iam.

O estômago do nosso protagonista reclamava alto e Samuel percebeu. Encerraram a visita no fim da tarde em um restaurante elegante dentro de um hotel pertencente ao Vaticano e, após a refeição, subiram para o lounge que havia na cobertura. O encanto de todo aquele banho de surrealidade foi posto à prova quando um estrondo grave e intenso chamou a atenção de todos ali. Indo cautelosamente até a beirada do mirante, puderam ver uma confusão de judeus ortodoxos, árabes e policiais há três ou quatro quadras adiante. Samuel, consultando seu WhatsApp, informou a todos que um atentado a faca acabara de ocorrer ali. A violência religiosa dava o sinal de que era hora de partirem.

Mais uma vez, Renato voltava para o hotel com dezenas de boas fotos e uma recordação incrível. Por dentro, ele estava satisfeito e feliz com tudo, mesmo com os riscos envolvidos no processo. Uma vez tendo chegado, ele tratou de passar o resto do sábado em seu celular e iPad comentando o passeio com o pessoal do Brasil e recebendo notícias de Alice, que havia viajado no fim de semana para uma festa no interior. Antes de dormir, ainda tirou um tempo para, a convite de José, irem comer em algum lugar na rua e aproveitar a noite para jogar conversa fora.